O surto de Vampirismo na Europa Iluminista

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O surto de Vampirismo na Europa Iluminista

Maite VieiraAntes de começar, gostaria de me apresentar. Sou formada em História com pós graduação em História e Cinema. O imaginário acerca dos vampiros sempre me fascinou e minhas pesquisas acadêmicas são direcionadas para isto. Minha monografia de graduação (que publiquei em 2015 e deixarei o link abaixo para quem se interessar) versa sobre como e de que forma o mito foi apropriado pela literatura do século XIX. Tudo começou com um suposto surto de vampirismo no leste europeu investigado pelo padre beneditino Augustin Calmet, vamos lá.

Em 3 de março de 1732 a revista Le Glaneur Hollandais, uma revista fraco holandesa que circulava na corte de Versalhes, publicou em detalhes um caso que daria início, na França, à discussão sobre a existência ou não dos vampiros. A publicação também passou a usar o nome vampiro – em francês vampire, até então era grafado vampyre – pela primeira vez. A história de Arnold Paul teve repercussão imediata em toda a Europa. A investigação do caso foi comandada “pelo médico militar Flückinger e endossado por vários oficiais da companhia do arquiduque, o documento final foi apresentado ao conselho de guerra de Belgrado.” (DEL PRIORE, 2000, p. 108). O relatório intitulado Visum e repertum, informava sobre a abertura dos túmulos, exumação dos corpos e condições em que foram encontrados. Alguns anos depois em 1746, o “Traité sur les apparitions des esprits, et sur les vampires, ou les revenans de Hongrie, de Moravie , e” de Don Augustin Calmet trazia a descrição completa deste e de outros casos.

“Há cerca de cinco anos, que certo heiduque habitante de Médreiga (norte de Belgrado, uma cidade sérvia que fazia parte do império Austríaco), chamado Arnold Paul, foi esmagado na queda acidental de uma carroça de feno. Trinta dias após a sua morte, quatro pessoas morreram subitamente da maneira que morrem, de acordo com a tradição do lugar, os que são molestados por vampiros. Alguém então lembrou que Arnold Paul havia frequentemente contado, que próximo de Cassova, perto da fronteira da Sérvia turca, foi torturado por um vampiro turco – porque eles acreditavam também que os que foram vampiros passivos durante a sua vida, tornavam-se ativos após a sua morte, ou seja, que os que foram sugados, sugam também quando revivem – mas que ele havia encontrado meio de curar-se, comendo terra do sepulcro do vampiro e esfregando seu sangue. Precaução que não o impediu contudo de tornar-se vampiro após a sua morte. Foi exumado quarenta dias após o seu enterro, e encontrou-se sobre o seu cadáver todas as marcas de um arquivampiro. O seu corpo estava vermelho, os seus cabelos, as suas unhas, a sua barba estavam renovados, e as suas veias estavam cheias de um sangue fluido, espalhado em todas as partes do seu corpo e sobre o lençol com o qual estava coberto. O Hadnagi, ou o bailio do lugar, na presença de quem fez a exumação, e sendo um homem especializado no vampirismo, fez atravessar, de acordo com o costume, no coração do defunto Arnold Paul uma estaca espessa e afiada que atravessou também o corpo, o que fez com que, diz-se, soltasse um grito pavoroso, como se estivesse vivo. Depois disto, sua cabeça foi cortada e seu corpo queimado. Após aquilo fez-se o mesmo procedimento nos cadáveres das quatro pessoas mortas pelo vampiro, para que não fizessem o mesmo aos outros à sua volta.

Todas as precauções não puderam entretanto, impedir que no último ano, isto é,  ao fim de cinco anos, estes funestos prodígios recomeçassem, e vários habitantes da mesma aldeia perecessem. No espaço de três meses, dezessete pessoas de diferentes sexos e de diferentes idades morreram de vampirismo, alguns sem estarem enfermos, e outros após dois ou três dias de apatia. Conta-se, entre outros, uma moça chamada Stanoska, filha do heiduque Jotuitzo, que dormindo em perfeita saúde, despertou no meio da noite tremendo e gritando, dizendo que o filho do heiduque Millo, morto havia nove semanas, tinha tentado estrangula-la durante o sono. A partir deste momento definhou, e ao fim de três dias morreu. O que esta moça havia dito do filho de Millo o fez ser reconhecido como vampiro: então exumaram-no e encontraram-no como tal. Os dirigentes da região, os médicos, os cirurgiões investigaram como o vampirismo havia reaparecido, após as precauções que tinham tomado alguns anos antes.

Se descobriu enfim, após as investigações, que o defunto Arnold Paul não havia matado somente as quatro pessoas mencionadas, mas também vários animais que os novos vampiros haviam comido, entre eles, o filho de Millo. Com esta conclusão decidiu-se desenterrar todos que estavam mortos há certo tempo, e entre quarenta, encontrou-se dezessete com todos os sinais evidentes de vampirismo,  sendo assim tiveram o coração transpassado e a cabeça cortada, em seguida foram queimados e suas cinzas foram jogadas no rio.

Todas as informações e execuções de que falamos, foram feitas juridicamente, de forma correta e atestada por vários oficiais de guarnição que estavam na região, pelo cirurgião major do regimento e principais habitantes do lugar. O processo foi enviado no fim de Janeiro passado ao Conselho de Guerra Imperial em Viena, que havia estabelecido uma comissão militar para examinar a verdade de todos os fatos.

É o que declarou o Hadnagi Barriarar, os antigos Heiduques, sendo assinado por Battuer, primeiro Tenente do Regimento Alexandre de Wirtemberg, Clickstenger, Cirurgião Major do Regimento de Frustemburch, além de três outros cirurgiões da Companhia, Guoichitz, Capitão de Stallath. (CALMET, 1751, Capítulo X)”

 

A questão de ter sido uma investigação conduzida por oficiais militares com consentimento do Conselho de Guerra de Viena gerou todo um debate a respeito da veracidade dos fatos. Afinal não se tratava de uma história contada por alguém de forma duvidosa em um dos inúmeros manuais e roteiros de viagens que circulavam na época, mas sim de uma história atestada por documentos oficiais. O fato é que o caso Arnold Paul levantou polêmica e discussões em toda a França, contudo não foi o único, já eram conhecidos outros casos. Este e outros relatos sobre vampirismo começaram a circular entre os eruditos e filósofos franceses despertando a curiosidade e fazendo correr muita tinta em discussões e debates, o que surpreende é que uma crença até então relegada ao povo, acabou tomando conta da elite erudita.

Uma prova do conhecimento anterior destes casos é uma menção de Dom Calmet (no capítulo XIII) a notas publicadas no Mercure Galant, um revista francesa de grande circulação no período, em 1693 e 1694, que falam sobre a aparição de vampiros na Polônia e na Rússia entre meio-dia e meia-noite que sugam em abundância o sangue dos vivos e dos animais, e durante a noite sufocam suas vítimas. Uma outra característica destes vampiros é mastigar sua mortalha. Quando são encontrados estão com a mesma aparência de todos os relatos: corpo vermelho, sangue ao seu redor (provavelmente de suas vítimas), membros flexíveis, ou seja, como se estivessem vivos. O artigo traz também a forma de se manter protegido contra eles: comer pão que deve ser feito com o sangue que sai de seu corpo. (CALMET, 1751, Capítulo XIII).

O curioso é que estes relatos se espalham pela Europa no mesmo período do Iluminismo que, de certa forma, foi o ápice de movimentos anteriores como o Renascimento e o Humanismo, onde o homem tornou-se o principal objeto de estudos da ciência, que tenta se desligar do providencialismo e das concepções religiosas; “a alma é somente o pensamento e as idéias do homem, não sendo uma criação divina” (GRESPAN, 2003, p.48). A história transmite a explicação de seu mundo através da observação dos conhecimentos adquiridos anteriormente, o progresso “permitirá ao homem dominar ou domesticar a natureza racionalizando e melhorando suas condições de vida.” (FORTES, 1982, p.20).

No chamado Século das Luzes, estes homens das letras, filósofos, cientistas tinham como fim último o esclarecimento humano, a busca da explicação do mundo pelo racional, o entendimento da natureza e dos processos naturais independentes da providência divina. Não somente no que dizia respeito à religião, mas também em relação aos governantes e às formas de governo sob as quais viviam. Neste período toda a sociedade, sua estrutura e organização estavam sendo contestadas, analisadas, criticadas e, para eles, as soluções viriam da ciência, do progresso.

A difusão de jornais e panfletos neste período permitiria a discussão dos mais variados assuntos que faziam toda a vida literária girar em torno das conversas de salão entre os homens letrados da ciência e também nos cafés populares, visto que os livros, conforme Grespan (2003, p.14) eram caros e de pouca disponibilidade conseqüentemente, de difícil acesso as camadas sociais mais baixas. Associadas aos jornais e panfletos, estavam as narrativas de viagens, muito populares por tratarem de locais onde a maioria dos leitores não poderiam ir e por trazerem histórias de locais fantásticos, habitados por seres fantásticos alimentando a imaginação e a curiosidade da elite local. (GRESPAN, 2003, p.51-54)

Um dos homens de letras do Século das Luzes que mais se destacou foi Voltaire que publicou, por volta de 1764, uma de suas maiores obras: o Dicionário Filosófico. Um conjunto de verbetes organizados em ordem alfabética demonstrando sua visão sobre política, religião, filosofia, sem perdoar autoridades, crenças ou costumes; e um dos verbetes é Vampiro. Sempre mordaz em suas críticas ao Estado e a Igreja, ele menciona que:

“Estes vampiros eram mortos que saiam a noite dos seus túmulos para vir sugar o sangue dos vivos, quer à garganta ou ao ventre, após o que voltavam para suas tumbas. Os vivos sugados emagreciam, morriam consumidos; enquanto os mortos sugadores engordavam, tomavam cores vermelhas. Eram encontrados na Polônia, Hungria, Silésia, Moravia, Áustria, Lorena, em quantos lugares causavam mortes. Não se propôs falar em vampiros em Londres, nem mesmo em Paris. Confesso que nestas duas cidades houve usurários que tratam das pessoas de negócios, que sugaram em pleno dia o sangue do povo, mas não estavam mortos, embora corrompidos. Estes sugadores verdadeiros não residiam em cemitérios, mas em palácios extremamente agradáveis. (VOLTAIRE, 1764).”

Ainda faz uma crítica aos pontos principais da obra de Dom Calmet com a intenção de refutar suas palavras e julgamentos. Ele discute a crença nos vampiros, a incorruptibilidade dos corpos, o motivo para os mortos voltarem à vida e atormentar seus parentes e amigos, até mesmo as diferenças entre a crença das Igrejas ortodoxa e católica. Contesta as testemunhas e os casos que foram noticiados por jornais franceses e aqueles que Dom Calmet informa terem sido acompanhados por pessoas dignas de fé a mando de algum príncipe ou regente europeu.

“Calmet tornou-se por último historiador, e tratou dos vampiros como ao Antigo e Novo Testamento, trazendo fielmente qualquer coisa que tenha sido dito sobre ele. É uma coisa, em minha opinião, muito curiosa, que as atas feitas sobre estas mortes juridicamente, sejam todas relativas a mortos que tivessem saído dos seus túmulos para vir sugar os pequenos rapazes e as pequenas raparigas da sua vizinhança. Calmet diz que na Hungria dois oficiais enviados pelo imperador Charles VI, assistidos pelo bailio local e pelo carrasco, foram investigar um vampiro, morto há seis semanas, que sugava toda a vizinhança. Encontraram-no em sua tumba, sangue fresco, olhos abertos. O bailio deu sua sentença. O carrasco arrancou o coração do vampiro, e queimou-o; após o que vampiro não incomodou mais. […] Quem acreditaria que o medo dos vampiros veio da Grécia? Não da Grécia de Alexandre, Aristóteles, Platão, Epicuro, Demostenes, mas da Grécia cristã, infelizmente cismática. Por muito tempo os cristãos do rito grego imaginaram que os corpos dos cristãos do rito latino enterrados na Grécia, não se corrompiam por terem sido excomungados. É precisamente o contrário entre nós, do rito latino. Cremos que os corpos que não se corrompem são aqueles marcados pelo selo da santidade. E logo paga-se em Roma para dar-lhes uma patente de santos, sendo então adorados. Os Gregos são persuadidos que estes mortos são feiticeiros; chamam-nos broucolacas ou vroucolacas,[…]. Estes mortos gregos vão às casas sugar o sangue das pequenas crianças, comer a ceia dos pais, beber seu vinho e quebrar todos os móveis. Pode-se acabar com eles apenas queimando-os, quando são apanhados. Mas é necessário ter a precaução não o pôr ao fogo por inteiro, somente após ter-lhes arrancado o coração, que se queima a parte. (VOLTAIRE, 1764, VAMPIRO)”

Pode-se perceber, na citação acima, a ironia e o sarcasmo de Voltaire em relação a Dom Calmet e também as crenças em vampiros, sem deixar passar uma crítica à Igreja Católica em relação ao culto dos santos. Segundo Voltaire (1764) as discussões sobre os vampiros na Europa duraram somente alguns anos e quanto mais vampiros eram mortos, mais vampiros surgiam.

Ao usar a palavra “vampiro” em suas discussões e tentativas de ridicularizar Dom Calmet e sua obra, os filósofos iluministas ajudaram a difundir o mito e a crença nos vampiros. Na Alemanha, por exemplo, os vampiros já eram conhecidos – ainda que não fossem chamados de vampiros – e os estudiosos das universidades alemãs tentando entender o fenômeno concluíram que não era real. “Ajudando a iniciar o debate estavam as teses do teólogo Michael Ranft, De Masticatione Mortuorum in Tumilis Liber (1728) e a tese de John Christian Stock, Dissertio de Cadauveribus Sanguisugis (1732).” (MELTON, 2003, p.11). Estas obras ficaram conhecidas em sua maior parte por um grupo de cientistas e estudiosos alemães, aí reside a diferença do Tratado de Calmet.

O interesse pelos contos sobrenaturais, a difusão das informações mais rápida pela circulação de jornais, revistas e panfletos e todo movimento cientifico e intelectual em busca de explicações racionais para todos os fatos e acontecimentos é o que justifica o chamado surto de vampirismo na Europa Iluminista. Até mesmo a Universidade de Sorbonne, já cheia de prestigio na época, se pronunciou sobre o caso, condenando a profanação de corpos e a maneira como os mortos estavam sendo violados. (MELTON, 2003, p.XI).

E justamente no Século das Luzes é que os vampiros se espalharam como epidemia, pois para destruir este mito era preciso examinar, analisar, “dissecar as crenças antigas”. Claro que somente aqueles que não acreditavam anteriormente ficaram convencidos da inexistência destes seres. (LECOUTEUX, 2005, p.15).

Além disto, em 1755 a imperatriz Maria Tereza da Áustria, instituiu uma lei que proibia a exumação de corpos suspeitos de serem vampiros e retirou das mãos do clero estas investigações passando-as para altos funcionários do reino. (MELTON, 2003, p.183).

Um dos maiores responsáveis pela propagação das historias e pelo mito do vampiro foi o abade beneditino Dom Augustin Calmet; se sua intenção foi desmistificar o vampiro e provar sua inexistência, a enorme compilação de casos que fez acabou por promover a crença e colocar de vez o vampiro no mundo moderno.


6cc1fb9910Minha monografia trata destas questões e como, após tornar-se relíquia intelectual por ter sido rechaçada pelos iluministas, a dissertação de Calmet foi consultada e retomada pela literatura do século XIX desencadeando contos e romances que acabaram por interessar Bram Stoker e… O resto virou História, como todos sabem, literatura, cinema e hoje, a televisão, nunca esqueceram o vampiro. Ele sempre volta, eternamente no imaginário ocidental.

Espero contribuir sempre para a rede e, segue o link para meu livro:

http://www.estantevirtual.com.br/igleciasgarcia/Mayte-Regina-Vieira-Sombras-e-Sangue-195049741

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