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O Demônio de Neon, Vampiros e Perséfone

Não sou eu que quero ser como eles. São eles que querem ser como eu!” Jess, O demônio de Neon

[Um artigo de Lord A:.] Hipnótico como uma serpente é o melhor adjetivo que encontrei para delinear algumas linhas sobre o filme “O Demônio de Neon” (The Neon Demon, 2016) do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn (Drive, Valhalla Rising). Alguns leitores e leitoras dirão que eu vejo vampiros, ainda que em tons subjetivos por toda parte, assim como nuances de mitologia também. Sim ambos elementos estão presentes na obra como destaco ao longo deste artigo. É uma história fatal sobre essência e perda de inocência, a bela e misteriosa Jess (Ellen Fanning) vem para a cidade de Los Angeles tentar a sorte no implacável mundo fashionista. O tom da película orbita algo como se fosse um encontro dos filmes “Showgirls”, “Cisne Negro e “Laranja Mecânica”. A obra também uma sutil influência surrealista de Alejando Jodorowsky e Kenneth Anger em alguns momentos. E já adianto que gostei bastante do filme.

Arrastado, moroso e repleto de cenas de rica fotografia gravadas com diálogos onde as personagens conversam através de seus reflexos nos espelhos, que evidenciam o solipsismo de cada uma delas. Só existe o foco, a necessidade (voraz) e a experiência de cada uma. Superficiais, ausentes de empatia e vorazes. Feras sanguinárias trancafiadas em quartos de hotéis baratos. Aliás isso desponta logo no começo do filme quando um “Cougar” é encontrado pela protagonista no seu quarto.

Em romances como Carmilla de Sheridan Le Fannu (uma adaptação em prosa de Christabel de Coleridge) temos a cena imortal da bela jovem, casta e virginal que deixa o castelo ou mansão descalça trajando uma longa camisola branca na calada da noite para orar na capela do lado externo e acaba atraindo para si um mal inominável que sufocará sua expressão e essência. Na releitura moderna sai o castelo do romance gótico e vem o hotel barato gerenciando por marginais, onde lindas jovens desejosas sempre com ares vulneráveis, dormem de portas abertas se imaginando seguras – mas em cada uma jaz uma fera amoral e voraz ávida por atenção, fama e eliminar quem ameace sua posição transitória e substituível. Maquiadoras, fotógrafos e agências fazem as vezes da ameaça sufocante. As personagens são ausentes de empatia, é como se cada personagem fizesse um monólogo perante o outro. E assim como uma fera tudo se resume a fome e sexo. Tudo é esteticamente belo na aparência mas vazio e faminto…

O filme se inicia focando o olhar de sua protagonista e se encerra destacando seu olho, vivemos, espreitamos, caçamos e morremos pelo que vemos nos contrastes do mundo (e as vezes nos perdemos de si neste processo) – uma sociedade de aparências e de belezas que oferecem privilégios aos que pagarem seu preço e que devora vorazmente os que se recusam ou desconhecem sua barganha. Vemos isso em tom bem explícito quando a protagonista Jess (Ellen Fanning) é abordada no banheiro da boate pelas outras 3 jovens e o papo oscila ao redor de nomes de batom que lembram comida e outros associados ao sexo. Outro ponto importante é o  olhar do esteta, a visão do criador e a eterna busca por suportes que cristalizem expressivos devaneios; no mundo fashionista este suporte é o corpo dos modelos e isso nos leva ao principal dilema do filme: a beleza natural versus a beleza construída através de cirurgias. A própria notoriedade ou glamour natural que mesmeriza atenções e tornam alguns vistos naturalmente no meio da multidão e outros por mais que se esforcem sempre fantasmas.

O ciclo Daemônico e a jornada do herói no romance dark

Enquanto vivos somos hipnotizados pelo sensorial e a matéria em todos os sentidos, a ponto de perdermos nossa justa medida, a consciência e a própria essência. Não enxergamos com os olhos e sim com aquilo que carregamos como nossa têmpera, vocação, chamado, jeitão, vivência ou ainda essência segundo alguns filósofos e espiritualistas. Mas também vivemos e existimos em uma cultura que rejeita e renega a presença da essência (têmpera, vocação, chamado, jeitão, vivência) desviando estes temas para algo subterrâneo e alternativo (desprezível e sem utilidade prática) mas que depende de sua existência: neste caso a beleza e presença de espírito da protagonista do filme. Este “dom” a torna cobiçada e declara sua própria sentença de morte – pois deverá ser furtado ou ainda devorado (sinônimos a sua própria maneira). Os dois fotógrafos tentam furtar quando contam com ela como um canal ou suporte de seu trabalho. O costureiro internacional a sua própria maneira a quer para vestir as obras que cria e se projetar no mercado, ele a hipnotiza e seduz com o glamour que virá quando ela se destacar encerrando seu desfile. Já a maquiadora e as outras duas modelos querem devorar a jovem literalmente. Todos personagens ávidos e sedentos de atenção para si, de serem vistos pelo que idealizam e de como agonizam para mostrar ao mundo através de suas criações quase neuróticas – mas vazias de beleza verdadeira para darem sentido as suas vidas no final das contas.

O mito de Narciso que passava seus dias a beira de um lago contemplando o próprio reflexo, até se apaixonar (pathos) pelo que via espelhado nas águas e morrer afogado nos é caro neste sentido, no filme O Demônio de Neon. Vemos o momento em que Jess se afoga em si na hora do tal desfile, o triangulo azulado se tornando avermelhado e ela beijando o próprio reflexo espelhado. Sinal visceral de perigo, momento decisivo e dela se apoderando do que representa, de si e que logo expressará na sentença: “Não sou eu que quero ser como eles. São eles que querem ser como eu!” Ao mesmo tempo em que ganha o poder sua própria superficialidade também a condena e o furto de si acontece – e ela virá a se afogar em si e ficar a mercê do seu destino trágico. Se ela se recusa ao sexo ela se tornará a comida ou prato principal das outras 3 feras.

Tal furto da essência sempre se dá quando nos permitimos aceitar as medidas, mensurações e dimensões dadas por terceiros e nos tornarmos baterias de seus desejos ou até mesmo suas extensões. Quando concedemos a terceiros o controle dos vouchers daquilo que nos determina, para que assim eles possam determinar sobre o que somos temos um problema sério em nossas mãos. A partir deste momento esquecemos dos nossos sentimentos e estes passam a responder as suas oitavas mais baixas e a abastecer um processo intelectual que justifique os mandos e desmandos e a necessidade mecânica e compulsiva de agradar quem controla tais vouchers. Nos tornamos regidos pelos impulsos mais basais e suas contrapartes mecânicas que se assemelham a loopings de repetição. Sobre eles a escritora brasileira LygiaFagundesTelles tem muito a dizer:

“O homem é tão necessariamente louco que não ser louco representaria uma espécie de loucura”, escreveu Pascal. […] Necessidade neurótica de agradar os outros. Necessidade neurótica de poder. Necessidade neurótica de explorar os outros. Necessidade neurótica de realização pessoal. Necessidade neurótica de despertar piedade. Necessidade neurótica de perfeição e inatacabilidade. Necessidade neurótica de um parceiro que se encarregue da sua vida. — ô Deus!… Tão difícil a vida e o seu ofício.” (A Arte do Amor)

Leitores e leitoras mais hábeis notarão que citei o mito de Perséfone no título deste artigo, ela também foi uma jovem deusa, filha do céu e da terra que herdava um vasto poder. Em algumas linhas gnósticas dos gregos ela era comparada a própria essência ou a consciência e seus eventuais dois raptos (ao menos em alguns mitos) representavam a descida da consciência ou essência na matéria, como ela ficava hipnotizada e arrebatada pelo sensorial e se esquecida de si. Nesta mesma linha o inferno ou o submundo também era o exílio na carne. As mudanças das estações tão caras ao seu mito eram a passagem do Kharma e sua breve reunião com a mãe divina os intervalos entre as reencarnações que marcavam seu retorno ao submundo. Uma releitura do mito de Sophia. Contamos sua história no evento equinocial “Sarau no Jardim de Perséfone”.

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