Do Trivial ao Duplo: Um Panegírico a Helmut Newton um texto de Gilberto de Lascariz
Do Trivial ao Duplo: Um Panegírico a Helmut Newton um texto de Gilberto de Lascariz: Ao longo desses 20 anos na Rede Vamp encontramos incontáveis espíritos faustinianos criativos e imbatíveis nos mais diversos prados. Lá em Portugal um desses se chama Gilberto de Lascariz, um Dândi Des Esseints par excellence! Nossos amigos da revista portuguesa de cultura gótica Elegy Ibérica o consideram como sendo a figura mais importante do pensamento esotérico neo-pagão em Portugal. Gilberto já esteve conosco no programa #AcessoRedeVamp (assista ao video) e hoje ele nos brinda com sua escrita sempre provocadora:
Do Trivial ao Duplo: Um Panegírico a Helmut Newton um texto de Gilberto de Lascariz
O que torna uma coisa trivial profundamente espiritual? Foi uma pergunta que me fiz muitas vezes. Se o trivial per si nos afunda na atrofia de uma existência amorfa e fechada na matéria, pelo contrário, o espiritual introduz-nos no espaço livre e aberto, intemporal, sem limites, em que os actos mais simples e comuns, sejam eles quais forem, são saturados e impregnados pela Presença do Transcendente. Quando Jacques Vaché mostrava a beleza dos seus sapatos de dândi a André Breton gabava a epifania da arte trivial de um pé calçado. Para ele a efracção poética irradiava somente do comportamento estético no quotidiano.
Já ninguém consegue viver o trivial como extensão do Ser. Nem consegue espreitar o Ser através de um par de sapatos. Nem mesmo que fosse um sapato arremendado por Jakob Boehme na sua humilde sapataria de Goerlitz. A humanidade só consegue viver o trivial como uma mosca existencialista, como em “As Moscas” de Jean Paul Sartre. O trivial tornou-se entorpecimento e apatia. Contudo, o trivial por estar na zona charneira dos signos, não sendo nem trabalho nem cultura, além do prazer e da acedia, tem a propriedade de se tornar o graal de uma nova espiritualidade.
O trivial favorece a Presença. Por exemplo, o acto trivial do tear, o charka, usado por Mahatma Gandhi para tecer as suas próprias roupas ou da agricultura no acto abnóxio de semear batatas entre os monges-magos da medieval Escola de Chartres; ou ainda da jardinagem entre os alquimistas espagíricos ou o acto de confeção do chá entre os monges budistas seguidores da escola Chan; ou mesmo o acto de estar simplesmente sentado debaixo de uma árvore como Buda e receber a Luz, como aconteceu a Dalila Pereira da Costa num jardim de Coimbra. O trivial despe os actos da sua aparente banalidade e respeitabilidade formal, da sua asfixia semântica, restituindo-lhe a simplicidade anónima e sem forma do Ser. É o “grau zero” de que falava Roland Barthes em relação à escrita.
Muitos actos triviais, que se devem distinguir dos actos mecânicos, que são alienatórios, podem restituir a aproximação ao Transcendente imanente no Ser. Não por eficácia própria, mas porque coloca a mente num estado zero de receptividade e abertura natural, sem necessidade de esforço meditativo. Os actos triviais têm a capacidade, pela atenção natural que exigem, de amputar o ruido interior do pensamento, que é a primeira barreira a ser destruída e saltada para o mundo não-humano pelo esoterista. O acto zero por excelência, verdadeira acção pura, é o sexo. O bordel deveria ser tratado como uma verdadeira igreja como fez Georges Bataille. Fornicar é rezar.
Voltei a encher o meu guarda-fatos de dispendiosos blazers de Karl Lagerfeld e Roberto Cavalli, de Philipp Plein e Tom Ford. Coleciono casacos pois ao contrário das rosas não murcham. Como os xamãs mongóis coleciono ossos humanos para me vestir. A roupa é para mim desenho e arquitectura coagulada no tecido. É Arte. É tão importante para mim como um evocativo quadro a óleo. Tem a vantagem de servir, não para dependurar na parede, mas para nos vestir e tornarmo-nos parte do desenho. Este elemento adicional, em que cada corpo humano veste o objecto artístico e o integra numa rotina ritualizada de vida social traz uma dinâmica semântica e mesmo política que nenhum quadro numa parede de museu faz.
O proprietário dessa arte oriunda do “high fashion”, não do funcional “casual wear” que é uma extensão pobre do modo quantitativo de existir da sociedade de massas, torna cada peça de vestuário numa nova construção heteróclita no seio uniforme da vida social. É como se fosse uma serigrafia movimentada na rua e impulsionada pelo desejo.
A moda pegou na ideia de Freud de que tudo é sexual e expressão da libido tornando-se o leitmotiv da arte quotidiana do “casual wear”. Se a sua finalidade é desencadear a libido e a admiração nos outros, para um dândi, que é por natureza um puritano de tendência androgínica, como a serpente ouroborus sempre em volta de si-mesmo, é para provocar os “acasos objectivos” e desencadear a experiência de sonho coagulado na realidade convencional e torná-la surrealidade.
O design de moda torna-se, assim, uma performance mais apolínea que dionisíaca, embora teatral ou, por vezes, um rito mágico que age pelo poder da analogia e da simpatia anagógica resultante do que se veste e da atitude do seu portador, agindo simbolicamente sobre o universo. O tipo de tecido, a cor, a forma, tudo importa para essa eficácia.
O vestuário é para o dândi um instrumento de reencantamento do seu universo solipsista. Os dândis consideravam, por isso, que a sua forma estética, seja em estática imobilidade ou em movimento, era pura estatuária religiosa, ao estilo da teurgia de Jamblico e a prática egípcio-caldaica de animação das estátuas, tornando-o uma manifestação da divindade. Era por isso que os dândis gostavam de passar o seu tempo sentados. Sentado pode-se fabricar a pose como uma estátua viva ou tornar-se um Golem. Tornar-se uma pintura na parede, mas viva, não morta.
Cada peça de arte vestimentar pode ser vista também da mesma forma que o olhar clássico, em estática imobilista como diante de uma janela, contemplado como mero objecto estético, como a pintura na parede ou sobre o cavalete. É por isso que gosto muito dos casacos desenhados por Bikkembergs, um designer belga de moda que começou a desenhar sapatilhas e, depois, roupa de luxo inspirada na geometria desconstrucionista. Ele faz o mesmo na sua criação de roupa de luxo que Frank Gery e Zaha Adid na arquitectura. Enchi também de belos blazers de Bikkembergs o meu caixão de fatos. Gosto, por vezes, mais de os ver do que os vestir.
Quando andava na Faculdade de Direito de Lisboa o meu maior desejo era chegar todos os dias dentro de um caixão transportado num carro funerário e ressuscitar teatralmente diante das gigantes portadas envidraçadas ao estilo Estado Novo e sob os frescos sensaborões do Almada Negreiros. Nunca consegui tornar este feito imaginário em realidade, mas ri-me sozinho muitas vezes do efeito dramático que teria sortido.
Quando o meu pai me perguntou que carro queria que ele me desse eu disse-lhe que queria um carro funerário que tinha visto à venda, com floreados dourados a ornar o tejadilho como fosse a moldura barroca dos quadros pintados dos santos na igreja. Já me imaginava a ir ao Botequim da Natália Correia ou à discoteca gótica do Heavens de carro funerário. Depois de fechar podia ficar a dormir no caixão enquanto esperava o nascer do dia. A minha mãe realçou em pânico que não queria dentro de casa, na garagem, um carro funerário com cheiro a mortos, nem fora de casa estacionado à porta.
O meu ideal de vida então era viver num castelo da Transilvânia como o Conde Drácula ou o dândi Des Esseintes, vestido de aristocrata solitário e louco ou, então, a beber o vinho fresco e sanguíneo do pescoço das aldeãs vegetarianas. Nunca tive o desejo de seguir a carreira política ou cultural institucionalizada que alguns me propunham, mas de ser uma pedra no sapato da humanidade que intrinsecamente abominava. A humanidade para um canibal como eu só serve para me alimentar dela, como fosse qualquer galinha de aviário ou truta de açude.
Gostaria como artista da palavra de ser o porta-voz da palavra revoltada, a Palavra de Fogo que brota da “boca em chamas” do Akephalo, no Rito de Ieu o Hieroglifista. Aquela Palavra que os pedreiros de simulacro dizem estar perdida, apenas porque são burgueses entorpecidos e blasés vestidos de avental, como as sopeiras de minha infância, que não têm a alma felina do Poeta. Eles nunca cavalgaram o Tigre evoliano.
Para me evadir desta odiosa humanidade que me circunda como bactérias parasitas insaciáveis e presas às forças da necessidade, só nos resta a arte de mudarmos de pessoa. Na arte fotográfica há muitos artistas-loucos como Joel-Peter Witkin, Man Ray, Guy Bourdin e Bob Richarson, mas como estou a monologar como uma costureira sobre dandismo quero mencionar outro germânico muito especial, esse judeu, chamado Helmut Newton.
Helmut é o Apollinaire do “Teatro e o seu Duplo” na fotografia de moda. É a Condessa Bathory que dependura nuas e invertidas de ganchos de açougue as raparigas virgens no seu castelo. Há algo de religiosamente perverso e retorcido, à rebours, por detrás da fria textura do corpo dessas requintadas mulheres fotografadas por H. Newton em contexto ritual, segundo a sensibilidade do descontínuo da geométrica arquitetônica dos prédios nova-iorquinos.
A moda quer sempre captar o momento mais intenso do descontínuo, a intensidade do efémero. Como arte viva que se deteriora e envelhece como qualquer alimento ou ser humano ela é fátua. O efémero depois da sua existência diáfana numa revista de moda ou na passerelle só pode ser recordado pela fotografia. Mas a fotografia é já uma alteração dessa realidade na intenção de a eternizar esteticamente. Recordar é uma forma de aprisionar no fundo poço do continuum do tempo.
O que gosto na Arte é esta habilidade de nos enganar pela sedutora superfície de sua existência objectualizada. As fotografias de Helmut Newton beira o fetichístico e o ritualismo do BDSM, que o fascinara tanto na leitura de “ A História de O”, de Pauline Réage, nos anos cinquenta, ameaçando a libidinosa existência do mundo trivial da moda. Tirar a capa enganadora que o cobre, despir a massa maquilhadora da linguagem, propositadamente bela e opaca, como a boca revestida de baton ou o revestimento de titânio de um ferrari, é um prazer de escalpelizador a que me dedico também. Sou como o assassino a escalpelizar adolescentes gordas no filme “O Silêncio dos Inocentes” e a costurar a sua pele cândida de virgem frívola, extraída cirurgicamente para fazer roupa. A escrita é o fundo obscuro do poço onde aprisiono a realidade isolada do mundo.
Sempre gostei destes assassinos-artistas. No meu livro “A Mãe Canibal” fiz um sentido panegírico ao Assassino na figura icónica de Landru. Faço-o muitas vezes na figura de Caim, como fez Lord Byron e o esoterista Andrew Chumbley. Isso é, também, a Arte do Esoterismo: a de nunca se iludir pela forma pélvica da linguagem que tem de matar e anda à deriva na superfície da escrita inteligível.
O esoterismo é um peixe ininteligível das profundezas e só se encontra na linguagem obscura dos livros de poesia e alquimia. Esoterismo às claras, moderno como alguns velhos estúpidos clamam, confundindo com a esoteriologia, é apenas uma contrafação dos medíocres na feira das vaidades retóricas e vazias. O esoterismo não é como a Bíblia e o Corão ou mesmo o Budismo Mahayana, que querem ser uma boia de salvação para a massa idiotizada da humanidade. Se no Céu estivesse lá toda a gente que encontro na rua exilar-me-ia no Inferno entre os assassinos, as prostitutas e os filósofos pecadores.
O universo de Helmut é de um religioso sinistro que beira o fetichístico mais masoquista. Como judeu germânico que admira os corpos brancos e musculados das mulheres de Leni Riefensthal e as fardas negras e impecáveis dos elegantes machos de Wewelburgs, ele inverte sibilinamente os códigos morais e semânticos institucionalizados pelo mundo ocidental que lamentam em hossana os judeus mortos na câmara de gás. Ele usa a estética nazi e a sua semântica musculada para a inverter e transfigurar na fotografia através de um corpo soberbo e desnudado, sexuado, de amazona predadora nas discotecas parisienses agora submissa ao poder da Imaginação Perversa. Helmut Newton é mais um germânico ousado do tipo Fausto com pitadas gaulesas de um Sade, que um judeu a lamuriar, com um número tatuado no braço, as câmaras de gás e a rezar a Iavé enquanto dá cabeçadas no muro das lamentações.
Ele consegue pegar num tema com fins comerciais e publicitários para consumo de massas na Vogue, por exemplo, e virar tudo do avesso, tornando a linguagem fotográfica de registo trivial para as revistas de moda em algo terrorista e religioso. Sozinho ele é todo o Bando Baader-Meinhof da fotografia de moda. O seu mundo religioso tem o cheiro a mortos das velhas igrejas católicas com santos a sangrar como fosse um matadouro ou um açougue museologizado. O religioso dos calabouços de bondage sadiana onde se fustiga o corpo iconizado em estátua de mármore frio e sensual da carne passiva da mulher. Nos anos noventa o porno-chic está em alta com Helmut Newton, deixando herdeiros fogosos como o estilista americano Tom Ford para inquietar o futuro.
Ele faz do corpo dos modelos congelados eroticamente numa pose musculada e sensual que beira a religiosidade contorcionista dos nus expostos nas câmaras de tortura da Inquisição e nos antros sofisticados de bondage. A sua obsessão é o duplo e o voyeurismo. Por isso, a recorrência obsessiva do espelho e do duplo nas suas fotografias. O Duplo é o reflexo glorificado da nudez feminina. A parte mais interessante da mulher é a que se vê por detrás. A sua face pouco lhe interessa. A sua parte frontal é para ser vista pelo reflexo no espelho. Ele interessa-se mais pelo reflexo, símbolo icónico da moda, do que pela pessoa. Tudo é um Duplo, tal e qual como para o esoterista. Como é que uma casa de alta-costura quer vender um produto da moda high fashion desta maneira? Como dizia um estratega publicitário da Vogue o que faz vender é o que nos faz imaginar e não o que nos faz vestir.
Como se isso já não fosse uma narrativa anticonvencional, numa publicação feita na Vogue em 1995, Helmut Newton acicata o furor puritano das feministas americanas, no “The Sourcebook on Violence Against Women”, ao fotografar roupa high fashion com modelos de tacões de agulha com aparelhos ortopédicos nas pernas e em cadeiras de rodas. Retractadas como belas inválidas ele ironiza sobre a mentalidade de consumo no mundo da moda onde a mulher é mais um objecto. Não há para ele nenhum tabu, nenhuma barreira de decência, essa palavra ridícula. A Vogue permite-lhe tudo, como a Gucci há-de fazer, depois, com Tom Ford. Este último, estilista que fotografa as suas obras de carne e tecido, há-de dispensar as modelos e usar prostitutas em poses inconvenientes, no limiar do pornográfico.
Mas o segredo da inspiração de Helmut Newton era simples. Como admirador de James Ballard utilizou como inspiração o seu livro Crash, de 1974, onde corpos desfigurados, amputados e aperfeiçoados por próteses cirúrgicas de metal eram tratados como símbolo sexual. Cronemberg há-de fazer desse texto novelístico o seu escandaloso filme Crash que aparecerá na mesma altura, um ano antes em 1994. Helmut repunha o poder sedutivo dos implantes e das deformações como estética sexual e fetichista, que Joel-Peter Witkin levará a um patamar superior de estética do grotesco chic. O sex appeal das próteses biónicas perturba a sexualidade bovina da mentalidade burguesa mais blasé.
A Vogue, a vanguarda da fotografia de moda, irrompe de uma convencional revista de moda no início de 1898. Só a partir de 1913 com a direcção do Barão Adolphe de Meyer se passa das ilustrações de atelier para a fotografia. Ela é desde então a Bíblia da cultura high fashion. Desde os anos 80 a Vogue contrata os fotógrafos mais inconvencionais, na defesa clara que Man Ray e Richard Avedon fizeram de que a fotografia de moda era Arte. Na sua fileira de génios da arte estão Helmut Newton, Guy Bourdin e Bob Richardson. Fotos que mais do que sedutoras são perturbantes e escandalosas. Para vender o seu vestuário muito caro para gente muito rica vale tudo. Desde que se possa fazer do odioso arte. Mesmo que se ponha uma bela mulher nua a fornicar a sua própria imagem ao espelho vestida apenas com um par de sapatos. Tudo só para vender sapatos.
No fim da minha adolescência o meu pai abriu-me uma conta numa alfaiataria. Armado dos meus croquis espantava o alfaiate com os fatos redesenhados do tempo de Oscar Wilde e Baudelaire. Pintei o cabelo de amarelo pois queria parecer louco, mas o meu desejo era seguir Baudelaire e pintá-lo de verde. Caminhava pela rua como um candeeiro iluminado com “As Flores do Mal” debaixo do braço.
O século XIX era o século onde queria viver, com folhos a soltar-se das mangas do casaco de veludo e a oscilar a bengala no ar como trapezista simbólico a pontuar-me as palavras inspiradas. Não passo como Des Esseintes sem uns cálices de espumante “blanc de noir” todos os dias. Napoleão Bonaparte e Óscar Wilde faziam o mesmo. Sou como Marie Laveau em Nova Orleães. Mas sem as mulatas ajoelhadas entre as suas pernas abertas a rezar o cunnilingus. Enquanto bebe champanhe evoca a cantar os Loas. De certeza que num canto espreitava Bawon Samedi às risadinhas.
O Bawon Samedi é o arcano simbólico do dândi. Magro e morto como o dândi, mas sempre de falo erecto denunciado como os cristos pela saliência das calças sujas e a pavonear-se. Muitas vezes olhava para as fotos de Karl Lagarfeld e parecia-me ver a encarnação de Bawon Samedi. Assim, voltei a vestir camisas de folhos negros como um aristocrata de setecentos. Sozinho e assim vestido, mas sem espelhos como o Drácula, sorvo espumantes dedicado funebremente a mim mesmo. Como Odin “sacrifico eu a mim mesmo”, até me embriagar. Eu sou agora o Duplo-Sombra de Mim-Mesmo.
O espumante “blanc de noir” é uma verdadeira obra de alquimista. Na adega acontece à uva o mesmo que à matéria no forno do alquimista. Mas tirar da uva negra, de vinho tinto, uma bebida branca, isso é mágico, magistral. É esse espumante branco, ou melhor róseo, nascido da uva negra, que eu bebo. Para o padre da igreja a sua eucaristia é um vinho avermelhado como sangue do porto licoroso do tipo ruby, mas para o padre do diabo é o espumante “blanc de noir”. Branco como o sémen ou róseo como a vulva das bacantes. Como bem sabia Crowley e Kremmerz, nos seus ensinamentos secretos, é da vulva das bacantes em transe que se bebe o licor eucarístico. Os líquidos sexuais são líquidos vivos e não substância morta e seca como o pão ázimo, agora industrializado em bolacha da padralhada católica.
A Satã clamo sempre em voz alta imprecações longas e blasfemas em retórica oratória inspirada, como um relâmpago espontâneo do Verbo, cheia de poesia e beleza, como fazia Victor Hugo. A blasfémia tem de irromper das profundezas da nossa Alma com autenticidade carnal e transfigurada de poesia, grito apoteótico e beleza. A beleza das palavras devem equivaler à sua beleza de serafim. Só assim nos podemos abrir à ferida dionisíaca. Temos de sangrar de prazer pela palavra. Não é verdade, como dizia o Padre Pio, que a alma é um dom de Deus? O que caracteriza o Diabo é a sua extrema Beleza. As palavras que lhe são dedicadas, que nascem da Alma que é um dom de Deus, que está acima do Bem e do Mal, indiferente como Shiva, devem ser por isso de uma beleza inconvencional, incendiária e cortantes como a espada de um samurai, para serem verdadeiras. Devem resplandecer como o relâmpago de sua queda apoteótica.
O sacerdote satânico por excelência não segue os pasquins do luciferismo macdolnizado na Amazon pelos Fords e Aquinos saídos das pizzarias do consumo satanista americano. Ele escuta o dom do Verbo-Serpente que lhe irrompe da Alma pela sua própria boca. Vender a Alma ao Diabo, na língua oculta, nada mais é que o acto de a desalienar do reduto condicionado e contingente da humanidade indiferenciada e massificada, tanto seja pela religião ou a democracia, e entregá-la à inspiração anómica do Daimon e seu Verbo-Serpente. Eu não tive problema em trocar a minha alma pela sapiencialidade inspiratória logo aos 10 anos de idade.
Mesmo que só na idade adulta tivesse compreendido o seu significado esotérico. O meu Mefistófeles era William Backford. Ele é o meu “familiar” setecentista, ao modelo do engenheiro Álvaro de Campos em Fernando Pessoa, que ainda me alimenta o imaginário sapiencial com ironia inquietante das minhas palavras. É o meu alter-ego.
O Diabo é o equivalente do Dorian Gray contado por Óscar Wilde que cancela a Força G do envelhecimento e a põe num volt pintado na parede em forma do duplo de si mesmo. Karl Lagerfeld dizia que era Eterno. Mesmo quando já estava devorado pelo cancro e sabia que morreria daí a pouco tempo. Não era ele que vivia, era já o seu Duplo. Essa recusa da mortalidade é admirável. Milhões de imagens e filmes ainda o perpetuam pelo mundo como ainda estivesse vivo, evocando a soma dos seus resíduos psíquicos concentrados num volt de necromante. Como na figura mefistofélica e byronica que para si criou, mas invertendo a técnica do Dorian Gray. A imagem quando investida com as forças não-humanas do duplo é eterna. Mas ser eterno é demasiado aborrecido. Prefiro esfumar-me apoteoticamente como um cigarro na mão de um ilusionista e no fim dispensar Deus e o Diabo. Prefiro ser nada a ser alguma coisa. Ser trivial.
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