A MISSA DA MEIA NOITE NA NETFLIX OU QUANDO O PADRE É O VAMPIRO
A MISSA DA MEIA NOITE NA NETFLIX OU QUANDO O PADRE É O VAMPIRO: Outro dia meu primo me ligou empolgado e contou que tinha assistido uma série nova que eu ia adorar chamada Missa da Meia Noite na Netflix. Como ele é bastante pontual nas suas observações a série ganhou uns pontos na minha lista de seriados para assistir. Eu estava envolvido no cruento “Round 6”, uma excelente série sul-coreana sobre a natureza humana. Na sequência outros dois integrantes do Círculo Strigoi me escreveram emocionados e arrebatados e disseram a palavra chave que intitula este artigo: A MISSA DA MEIA NOITE NA NETFLIX OU QUANDO O PADRE É O VAMPIRO. Algumas pessoas podem reclamar que isso é um spoiler. E eu respondo com toda certeza o incomodo e a perturbação disparada pelo que você experimentará assistindo este seriado dificilmente será menor apenas por saber o óbvio.
QUANDO O PADRE É O MAL DA HISTÓRIA
Entenda que desde o tempo do Cardeal Richelieu, arqui inimigo dos Três Mosqueteiros nos romances de Alexandre Dumas isso já acontece. Podemos evocar também aqui a conspiração e os assassinatos dentro de um mosteiro medieval que acontecem durante a trama do livro “O Nome da Rosa” do grande Umberto Eco. Tudo pelo temor que houvesse um livro de anedotas escrito por Aristóteles e que se as pessoas perdessem o medo deixariam a religião. Até mesmo no filme “Stigmata” com a empolgante trilha sonora do Smashing Pumpkins concluímos que nem precisamos do demônio numa história de possessão macabra. Difícil ainda não pensarmos no padre exorcista interpretado por Sir Anthony Hopkins no filme “O Ritual” que em certo momento se vê possuído pelo mal e ordena que seu assistente primeiro acredite na existência do mal para assim poder exorciza-lo.
Já o ponto que me cativou na Missa da Meia Noite (Midnight Mass, Netflix) criado pelo Mark Flanaggan (das bem sucedidas The Haunting of Hill House e The Haunting of Bly Manor) é a lembrança afetiva do autor George Bernanosi (escritor francês que também viveu também em MG). Como ninguém este autor soube trabalhar a perspectiva do mal e seu encontro com os homens de Deus. Em especial penso nos livros “Sob o Sol de Satã” e “Diário de um Pároco de Província”. A primeira é sobre um padre que recebe como dom a companhia de Satã e tem como sina conhecer mais o mal do que a si e ao final enfrentar o próprio orgulho de sua condição se estar for verdadeira – a santidade. O outro é sobre como o mal se desvela como uma fina e imperceptível poeira cinza que se acumula nas pálpebras e no sensorial na forma do tédio e da preguiça – que você só sente quando é tarde demais. Não espero que Flanaggan conhecesse tal autor. Mas ver um padre vampiro me despertou uma memória afetiva por esses livros.
Enfim o padre Paul ou o Monsenhor Pruitt são realmente o mal na Missa da Meia Noite? Todo bem intencionado jaz no inferno afinal. Cabe ao padre nessa história trazer o mal para a sua comunidade. Dentro do amplo espectro do imaginário vampírico temos por exemplo alguns povos dos andes que viram nos conquistadores espanhóis e seus padres uma personificação muito semelhante aos vampiros, isso é muito bem contado na obra Vampiros Rituais de Sangue de Marcos Torrigo (Madras, 2002) ou na rua recente versão em inglês, disponível aqui. Outra aproximação são as acusações clássicas do medievo ao nascimento da missa negra no interior das igrejas a noite feitas pelos moradores dos campos e o populacho na Europa. De certa maneira, Midnight Mass atualiza este contexto na era dos streams.
ENTENDENDO A MISSA DA MEIA NOITE
Na série “Midnight Mass” temos basicamente um velho padre ao visitar a terra santa se perde da excursão durante uma tempestade e cai nas mãos de um vampiro. Rejuvenescido pelo sangue vampiresco e sua nova condição ele a interpreta como um sinal de sua nova relação com Deus. Assim ele retorna para sua antiga paróquia e oferece uma nova “comunhão” aditivada aos moradores da decadente ilhota. Desnecessário dizer que isso transformará todos em vampiros ou derivados.
As referências ao escritor de terror norte-americano Stephen King se derramam como o luar prateado sob as pétalas curvada das flores. A referência a Salem´s Lot (Hora do Vampiro,no Brasil) são notáveis.
A crítica social ao Cristianismo ali consiste no quanto a Igreja deturpa a palavra de Deus para justificar atrocidades e barbaridades cometidas pelos humanos, o que aconteceria se um Padre fosse transformado em um vampiro? Que tipo de justificativa religiosa a cabeça dele inventaria pra dar um sentido para todas as ações monstruosas que ele viria a cometer? A série é essencialmente a respeito dessa curiosa e atípica situação. Ainda não redimiu a Netflix da insossa Drácula de uns anos atrás, falamos dela neste outro artigo. Mas a mesma crítica pode ser estendida a quase todo movimento que peca pela auto reflexão e ponderação na contemporaneidade ao priorizarem a tal bipolarização.
Um ponto interessante é que o seriado acertou em cheio colocando um xerife muçulmano como o homem da lei e que logo descobre as coisas erradas que estavam acontecendo por lá na ilha. E justamente é quem levanta a lebre sobre como forçar a leitura da bíblia na escola primária não era uma ameaça a primeira emenda da constituição norte americana. Uma pena que ele e seu filho terão um desfecho trágico. Aliás você conhece a origem dos vampiros no império otomano? Dá uma espiada nesta postagem.
E há ainda uma crítica ainda mais velada no contexto da série, esta consiste no fato de um vampiro milenar oculto nos desertos da terra santa se inserir dentro de uma igreja católica e nada acontecer com ele. Será que Deus está realmente com os católicos? Será que eles realmente estavam certos sobre tudo? É dificil não pensar no personagem Toby interpretado pelo humorista britânico Rowan Atkinson ao final do seu famoso esquete. Anne Rice ofereceu uma resposta mais divertida nas desventuras dos vampiros Lestat e Grabrielle na Catedral de Notre Dame em Paris.
Aliás a recente safra de seriados vampíricos tais como Vampire (Netflix), The Strain, Penny Dreadful e a mais recente NOS4A2 (Amazon) são bons e criativos exemplos do diálogo estético com o arquétipo Vamp recentes. E aponto tranquilamente Midnight Mass nesta categoria, os produtores já superaram a para lá de desgastada fórmula dos triângulos amorosos adolescentes que predominaram no começo do século 21.
Para concluir esta abertura, aqui é a internet e afinal é sempre importante destacar que a série Midnight Mass/ Missa da Meia Noite é uma ficção sobre vampiros com afiada crítica social – harmoniza muito bem com o mandos e desmandos governamentais, polarizações, figuras messiânicas, políticos de estimação e afins no Brasil e outros lugares. Desnecessário pontuar que o universo da série nada tem a ver com o Ethos ou a Práxis da Comunidade Vamp no Brasil ou outros países – e que tampouco tenhamos qualquer tipo de hostilidade com qualquer religião seja ela qual for, entretanto lamentamos e desprezamos lideranças religiosas tacanhas, negacionistas científicas e fiéis descerebrados de qualquer uma delas. Tudo isto verdadeiramente nos faz correr muito mais do que a exposição de qualquer símbolo sacro. Entretanto, enquanto cidadãos também priorizamos nossa liberdade e a legítima defesa proporcional de nosso território e espaço em todos os meios.
É ADAPTAÇÃO DO LIVRO MIDNIGHT MASS?
O livro que foi publicado em 2004 chamado “Midnight Mass” foi de autoria do F. Paul Wilson é uma história de horror, vampiros e religião e serve apenas como inspiração ao seriado. Não tem nada a ver.
No livro os vampiros se espalharam pela Europa depois da queda da União Soviética e transformaram populações inteiras em mortos-vivos sedentos de sangue. Lá eles invadem impetuosamente diversas cidadezinhas e pequenas comunidades num verdadeiro banho de sangue. A história lá é sobre o Padre Dan que está embriagado num porão esperando seu fim, depois que o seu superior traiu a congregação e se tornou um vampiro. O fantasma de Bernanosi me sorri.
É HORA DA MISSA AS REFERÊNCIAS BÍBLICAS NOS EPISÓDIOS
A série é tomada de referências bíblicas nos seus episódios começando naturalmente pelo Genesis no episódio 1. Se pensarmos quão vulnerável, insuficiente e impotente é a espécie humana desde os primeiros anos de vida que precisam serem cuidados até o declínio na velhice não admira que em sua vaidade se agarrem a qualquer crença – ou qualquer coisa como coaches quânticos na contemporaneidade.
Salvação e redenção é o tema que conta como o protagonista retorna a Ilha Crockett, comunidade religiosa católica e assolada por um desastre ambiental. Ele volta perdido e desolado depois da vida no mundo, da prisão e da morte de uma amiga. Um pouco antes dele, sua antiga namorada também retornou para lá grávida depois de um relacionamento abusivo com outro cara. E no mesmo episódio conhecemos o Padre Paul que alega ter vindo para substituir o antigo monsenhor Pruitt.
Depois de uma novela bíblica citar a queda de Lucifer como a razão da extinção dos dinossauros no Brasil, não surpreende o o vampiro ancião desta série matar todos os gatos da ilha. Como este era um vampiro que morava na terra santa antes de se mudar para aquela ilha nos Estados Unidos, é possível que os gatos lhe recordassem de tempos não muito bons no velho Egito dos Faraós.
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O epísódio II se pontua sobre o Livro dos Salmos, conhecido por seus hinos e cânticos para adorarem Deus e anunciarem o Messias e o seu Reinado. O padre cativa os moradores da ilha ao citar em especial o trecho: “Ó Deus, tu nos rejeitaste, tu nos espalhaste, tu te indignaste; oh, volta-te para nós. (…) Fizeste ver ao teu povo coisas árduas; fizeste-nos beber o vinho do atordoamento. ”Salmo significa música”, segundo o padre e ele arremata com “É assim que devemos ser. É isso que significa ter fé, que na escuridão, no pior dela, na ausência de luz e esperança… nós cantamos. Cantamos aos céus.” Vale pontuar que este mesmo versículo inspirou até mesmo Anne Rice na obra Cante para os Céus.
E aí vem o período da Quaresma, a penitência para a redenção. Grupos de alcóolicos anônimos para ajudar, distribuição de bíblias na escola de maneira forçada violando a primeira emenda da constituição norte-americana e claro as promessas de recompensas e milagres. Da mesma maneira que alguém é bom só por temer o inferno é meio brega e vulgar se apegar ao sacro a espera de recompensa. Faltou um pouco a noção da “graça” ou da “fortuna” mas o diretor optou pelo tom arrastado e mais basal.
O terceiro episódio é sobre os “Provérbios” e sobre levar a vida pautada nos princípios, valor, moral e o sentido da vida tendo o temor a Deus como o caminho para a Sabedoria. E é por meio dela que Deus organizou todas as coisas, ou seja o caos (a matéria primeva na qual fez sua obra) e assim buscar por ela (Sabedoria) é a essência e a dívida de todo homem e mulher na vida religiosa.
Resumindo o princípio dos Provérbios de que o Temor a Deus é o princípio da sabedoria – mas falta discernimento ao Monsenhor Pruitt, um bom pároco, distinguir anjos do senhor de vampiros. O mais divertido é que a série não usa a expressão vampiros em nenhum momento.
É aqui que descobrimos como ele encontrou um “anjo” na terra santa ao se desgarrar e se perder da excursão. Há uns traços aqui bem Lovecraftianos com ruínas no deserto, ser alado sombrio e tudo mais. Para a visão do padre ele havia se submetido a vontade de Deus. E aqui descobrimos que o Padre Paul é o próprio Monsenhor Pruitt rejuvenescido pelo sangue do vampiro. E logo ele se vê compelido pela missão de salvar todo o rebanho da sua ilha pelo mesmo poder. A referência a Renfield carregando o caixote de Drácula ou ao filme Nosferatu é notória. Detalhe a palavra vampiro realmente não é usada no decorrer de toda a série. Mas o personagem Curtis Barlow de Salem´s Lot é o grande homenageado pelo diretor – em toda sua glória que não era possível nos filmes dos anos oitenta e noventa.
No episódio IV ou Livro das Lamentações aonde a transformação em vampiro se completa no padre e este se torna um morto-vivo atormentado pelo sol e com sede voraz de sangue. O momento é marcado por alguns personagens que são figuras de autoridade secular e religiosa que decidem acobertarem o padre em nome das maneiras misteriosas que Deus age no mundo. Difícil não enxergarmos o tom metafórico aqui e resistirmos a não tecermos comparações com os abusos e descasos governamentais durante a pandemia. Mas irei me restringir para não desviar o foco. Enfim, as figuras de autoridade permitem a contaminação da população pautados numa leitura distorcida da última sentença do Livro das Lamentações onde o autor Jeremias suplica a Deus que perdoe aquele povo, e os permita voltar ao Senhor completamente restaurados. Só que neste caso isso significa transformados em mortos-vivos. Toda figura messiânica do ocidente que não veio acompanhada de comprovações pontuais da própria natureza é e sempre será complicada.
O episódio seguinte ou Livro V é a respeito de como o Padre Paul começa a ser visto como o novo Messias. A alusão aos 4 evangelhos canônicos é notável. Aqui os fiéis enxergam que a ressureição do pároco Pruitt através do sangue do anjo é a prova de que os fiéis devem seguir seus passos para herdarem a vida eterna. Alguns milagres promovidos pelo Padre reforçam tudo isso.
Enfim, no universo da série a vida eterna realmente vem pelo sangue do anjo – mas um anjo da noite ou melhor um vampiro. Doenças desaparecem, vícios se curam, alzheimer se devanesce e a velhice é vencida. Há até um interlúdio romântico para o padre na figura da senhora Mildred que estava a morrer vitimada pela idade avançada e a demência, agora rejuvenescida pelos poderes dele. E como não poderia deixar de ser a conclusão vem recheada de finais trágicos para os apaixonados por serem tão demasiadamente humanos.
Vem o Ato dos Apóstolos ou o Livro 6 com o sacrifício heróico do que pensávamos ser o protagonista Riley, fica para a mocinha da série levar a cabo a missão de encerrar os planos do vampiro. Há até menção para lá de brega à “Protoporfiria eritropoiética” uma desordem metabólica severa que causa hipersensibilidade a luz do sol.
Brega por conta que associações de cuidadores e vítimas de porfíria até já terem processado o cara que saiu com a hipótese de associar porfíria ao vampirismo nos anos noventa. Conto essa história infame no livro Mistérios Vampyricos.
A batalha se acirra e o lado das trevas se livra das balsas e antenas para concluírem a transformação de todos moradores em vampiros na esperada missa da páscoa. Renascimento neste caso ganha nuances sombrias. Uma nova igreja com fiéis imortais. A possibilidade de comparações e analogias diversas aqui desde o espectro qlifótico ao político e social são imensas.
Como todos moradores já carregavam o sangue vampírico nas veias, ingerido no vinho da comunhão servida ao longa da série, bastava que morressem. E esse é o plano das autoridades da ilha oferecendo veneno no melhor estilo de cultos apocalípticos do Jim Jones. Dessa maneira os infectados morriam para se levantarem renascidos. Assim viveriam uma nova sociedade cristã nestes viés bizarros, com ideais igualitários, construindo uma comunidade rural autossustentável naquela desolada ilha assolada pela catástrofe ambiental. E dali propagariam o evangelho pelo mundo. Uma parte aceita de bom grado essa missão, quem rejeita é cruelmente degolado e os heróis precisam fugir.
Não surpreende que o episodio final seja nomeado como Apocalipse. No canone bíblico ele versa sobre resistir e enfrentar a luta prometendo vitória sobre todos que mandavam no mundo. Resta aos heróis enfrentar o padre (que trouxe o mal) prefeito (que permitiu sua disseminação) e a carola que com seu fanatismo perturbado deixou tudo rolar. E olha que a cruzada ia de mal a pior com a tal fanática embarcando os recém transformados nas balsas para infectarem todo mundo. Esperadas reconciliações vem – ainda que com o aguardado desfecho trágico pela luz solar. Enfim, só depende de você é a minha mentira preferida!
Então é dificil não pensar no episódio III ao final: “E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor” os últimos versículos do Apocalipse contrastam com a fanática cantarolando “Nearer, My God, to Thee”, conhecida em português como “Mais Perto, Meu Deus, de Ti”, que é um hino tradicional protestante do século 19, que diz que o Sol se pôs, as trevas caem sobre mim, meu descanso é uma pedra, mas nos meus sonhos eu estarei mais perto de ti meu Deus. Enfim, sem o sangue do vampiro ancião tomado todo dia na comunhão os milagres se vão. E acho melhor não haver segunda temporada e deixar este final emblemático que até faz a gente perdoar o tom arrastado predominante da mesma.
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