O despertar – capítulo de "Sob o véu negro" (ainda sem edição publicada)

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O despertar – capítulo de "Sob o véu negro" (ainda sem edição publicada)

Anoitecia na Serra do Cachimbo, na floresta amazônica. Kchintarus abriu os olhos devagar. Inspirou profundamente sentindo o cheiro de terra úmida, musgo e… Querosene?

Vagarosamente espreguiçou-se, permitindo que seu corpo sobrenatural saísse do torpor diário. Arrumou os longos cabelos negros para trás e ajeitou sua calça em farrapos. Definitivamente precisava de roupas novas. Arqueou o corpo para frente e ficou de cócoras, como um animal furtivo e rastejou para a boca da gruta que lhe servira de abrigo. Esgueirou-se pela abertura estreita em direção ao ar fresco da noite tropical. Se alguém olhasse de fora, daria a impressão que a terra regurgitou uma refeição indigesta, exatamente como as serpentes.

O céu estava absolutamente claro, sem qualquer nuvem e era possível enxergar cada uma das milhares de estrelas do firmamento. Observou a longa faixa de estrelas mais aglomeradas – A via láctea – pensou. Lembrou-se de tempos remotos, quando era um outro tipo de caçador. As estrelas eram referência e eram tidas como um mapa. Chacoalhou a cabeça, afastando a nostalgia e esticou o corpo musculoso até atingir os seus 1,94 metros. A pele marrom avermelhada, como a dos índios norte-americanos, reluziu sob o luar e seu cabelo liso brilhou sob a nona lunação. Nesta fase a lua estava metade acesa, e provia boa luminosidade, mesmo para aqueles que, como ele, não tem sua visão preparada para a escuridão.

Deixou que seus olhos emitissem um amarelo fantasmagórico, clareando a noite densa e apurou os ouvidos. A mata estava quieta, como se algo tivesse assustado os animais. Farejou o ar para localizar de onde vinha o cheiro de querosene e seguiu nesta direção. A medida que seu olfato apurado identificava outros odores estranhos à mata, tais como borracha, carne, e madeira queimadas, sua curiosidade aumentava. Acelerou o passo a uma velocidade inumana, tornando-se apenas um vulto, o vento acariciando seus longos cabelos. Em poucos instantes chegou a uma clareira recém formada pela queda de um avião, a alguns quilômetros de onde repousava. Olhou os pedaços de metal retorcidos e, despreocupado, identificou partes de um prefixo, onde lia-se PR-GTD.

Andou entre os destroços, curioso. Despretensiosamente revirou algumas partes metálicas, empurrou outras, mas as pessoas estavam ou carbonizadas, ou sem sangue vivo.

– Que pena – murmurou baixinho, quase desapontado com a ausência de uma refeição rápida.

Desde que se embrenhara na mata, para seu retiro anual, não provava sangue humano. Macacos, onças e outros animais impediam que ele entrasse em frenesi, que a sede lhe dominasse, mas sangue humano era inigualável. Durante este pensamento, abriu uma das malas espalhadas por toda a área. Roupas femininas. Arremessou-a por sobre o ombro, como quem atira um pedregulho e continuou a revirar o local, bagagem após bagagem, procurando algo que lhe servisse e agradasse. Assobiava uma melodia conhecida, de autoria dos Rolling Stones, enquanto cantarolava Time is on my side. Identificou mais uma bagagem e abriu-a. Desta vez sorriu, expondo os caninos alvos e alongados. Um sorriso largo, estampado em um maxilar forte, de desenho marcante. Pegou uma calça jeans, uma camiseta branca e preparou-se para vestí-las, quando o ouviu algo. Estacou. Imóvel, apurou os ouvidos para distinguir o som que chagava-lhe aos tímpanos, numa intensidade que ouvidos normais jamais captariam. Filtrou os ruídos do crepitar das chamas e do borbulhar do plástico derretido, até que isolou o som que chamara sua atenção.

De início achou que fosse algum animal. O som lembrava o gargarejo fraco, como o ar forçando sua passagem através de algo molhado, mas em seguida veio um gemido fraco, um choramingo humano. Teria alguém sobrevivido?

Terminou de vestir as calças e, atiçado pela curiosidade, arrancou em direção ao som. Poderia tirar proveito daquilo, imaginou abrindo novamente o sorriso. Às vezes sentia-se uma criança impaciente, quase divertia-se com o suspense.

Chegou a uma clareira menor, com partes da cauda do avião, mas o som não vinha dali. Era mais para trás ainda, antes do local do impacto. Moveu-se por entre os galhos e árvores além da clareira menor, sempre em silêncio, com a atenção concentrada no som que lhe chamara a atenção. Passou por mais alguns destroços até que avistou um brilho diferente e o cheiro forte do sangue invadiu-lhe as narinas, atiçando-lhe o apetite. Satisfeito, avançou mais alguns passos e encontrou um homem moribundo. Escorria-lhe sangue de diversos ferimentos. Notou que um galho havia transpassado um dos pulmões e percebeu que era de lá que o gorgorejar vinha. Era o sangue passando pela perfuração. A pulsação do humano estava fraca e ele parecia inconsciente. Havia um longo corte na testa daquele infeliz. Vertia sangue já não tão abundante. Kchintarus curvou-se sobre aquele corpo quase morto, colocou a língua gélida para fora e lambeu toda a extensão do ferimento, sentindo o gosto ferroso do sangue ainda quente. Neste instante o moribundo gemeu e abriu os olhos, tossindo golfadas de um líquido espumante e avermelhado. Kchintarus não esperava por isso e assustou-se levantando num salto para trás. Desequilibrado, caiu sentado e soltou um palavrão em sua língua mãe, o Lakota.

– Sunka (cão)! – gritou ele.

Recuperou-se do susto e notou que o pobre coitado estava se afogando no próprio sangue. Seus olhares se fixaram um no outro. Ele podia, de certa maneira, sentir a dor que daquela pessoa, enquanto o moribundo tentava esticar-lhe o braço com várias fraturas, em súplica. Pensou nos tempos de guerra, e em seu próprio povo em situação de dor. A cena falou-lhe ao coração quase morto, que reagiu com compaixão.

Num rompante de emoção, levantou-se e se aproximou do sujeito. Mordeu o próprio pulso, fazendo um corte com os caninos afiados e da ferida brotou um líquido espesso, de cheiro marcante e acre. Delicadamente estendeu o braço até a face do sujeito, deixando que as primeiras gostas escorressem pela boca do infeliz, que demonstrava repúdio pelo o que acontecia, mas já não tinha muitas forças para lutar contra aquilo.

Foi então que aconteceu. Estalos altos dos ossos partidos que voltavam ao lugar fizeram-se ouvir em alto e bom tom. A medida que seu corpo ia se curando, a dor que acompanhava o processo cobrou seu preço e o humano gritou de agonia e dor. Curvou-se em posição fetal e sentiu cada osso partido, cada corte, cada luxação e contusão milagrosamente se curar, a medida que o sangue maldito do estranho percorria suas veias e espalhava-se como veneno pelo corpo. A respiração foi acelerando e o corpo começara a arder em febre. O coração parecia que ia explodir no peito. Sentia as batidas fortes nas têmporas. Flashes de uma vida que não era dele invadiam-lhe a mente. Cenas de um passado remoto, de um povo extinto e sua guerra contra um povo branco e suas lanças de trovão. Viu quando um deles, vestido com uma roupa azul apontou-lhe a lança mágica e evocou o trovão. Sentiu o impacto da bala fumegante no ventre e viu o corpo cair no chão inerte. Sentiu o sangue quente vir-lhe à garganta. Percebeu o anoitecer estava acordado ainda, agonizando, quando o andarilho se aproximou. Estendeu-lhe a mão, pedindo socorro, mas fora recompensado com um dom maldito, com uma vida de sombras. A imagem se desfez em névoas e sentiu o corpo começar a tremer gradativamente até entrar em convulsão, para em seguida ficar completamente imóvel, rijo. Tentou puxar o ar, mover os braços, mas estava morto. Não se desligou da matéria, como imaginava que seria sua morte. Nada de olhar para o próprio corpo, como lera tantas vezes. Onde estavam os anjos? Onde estava a luz? Continuava ali, observando impotente através de seus olhos mortos. Espectador de um show de horror.

Clamou pela morte, para levar-lhe pelas mãos aos seus entes que partiram, como naquele livro, mas ela não veio. Apenas o estranho permanecia ali, olhando-o triste, com pesar.
Kchintarus observara a cena se lembrando de sua própria sina. Da noite em que ele próprio fora conduzido para esta vida maldita por outro andarilho da noite. Agora, a pessoa a sua frente também a conheceria.

Erick ficou ali deitado por mais alguns momentos. Dentro de seu corpo morto. Apenas a visão não lhe abandonara. Todos os outros sentidos deixaram de responder. Estava surdo, sem sensação tátil ou olfativa até que finalmente sua visão também se rendeu à escuridão.

Subitamente seu corpo relaxou do estado rijo, espalhando-se pelo chão da mata. Tomou fôlego profundamente, como quem vem à superfície depois de um longo mergulho. Quando expeliu o ar, ele veio acompanhado de uma mistura de sangue, saliva e suco gástrico. Vomitou tudo o que guardava no estômago. O processo estava quase concluído. Suava frio, quando a visão retornou, assim como os demais sentidos.

Depois de algum esforço, finalmente conseguiu assumir o controle dos seus músculos para então virar-se lentamente de barriga para baixo. Ficou de quatro e quando terminou o movimento, devagar, sentou-se no chão com as pernas cruzadas. Tudo parecia diferente, mais vivo, mais cheio de cor. Seus ouvidos captavam os mínimos ruídos, mesmo os mais distantes. Podia sentir o cheiro do chão, do húmos gelado e úmido abaixo de si, e separá-lo do cheiro de queimado e de querosene. Levantou o olhar na direção do estranho, que o observava com ar severo. Podia ver cada detalhe dele. Os longos cabelos negros, jogados para trás, a compleição forte, que fazia a camiseta branca revelar os contornos do peitoral delineado e dos bíceps fortes. Nitidamente a camiseta era menor do que suas medidas exigiam. Ele estava sentado sob uma pedra coberta com linquen, e tinha um ar que passava para um estado de curiosidade. Erick não estava pronto, ainda, para falar. Tentava entender tudo o que acabara de acontecer.
Kchintarus se levantou e caminhou na direção dele. Agachou-se ao seu lado e disse:
– Calma agora. Nem todos sobrevivem ao que acaba de passar. Está com fome? – indagou o índio.

Erick assentiu com a cabeça, ainda em silêncio. Sentia que de alguma forma estavam ligados a partir de agora.

Kchintarus ofereceu o pulso ao companheiro, estendendo-o diante dos lábios do recém desperto, que o tomou nas mãos. Assim que Erick aproximou a pele avermelhada de seus lábios, sentiu os caninos projetarem-se para fora da gengiva. Sabia, instintivamente, o que fazer.

Mordeu com força e deixou que o sangue percorresse seu caminho dentro da boca dele, que fluísse para dentro de si, garganta abaixo. Não era quente. Era morno, quase frio, com uma textura espessa e um gosto ácido. Era diferente ao toque da língua e dava a impressão de uma fruta verde, dando liga na boca, mas aquilo lhe satisfazia de uma forma especial. A bem da verdade, se não fosse o fato de estar bebendo o sangue de outro homem, ele diria que era uma sensação de êxtase, quase sexual. Intensificou a sucção. Queria mais. Não conseguiu parar até que Kchintarus tirasse o pulso da sua boca. Erick entendeu que bastava. Seu corpo vibrava com a intensidade do sangue de Kchintarus. Era capaz de sentir cada uma das células de seu corpo respondendo ao encantamento da noite. Junto com o prazer veio a culpa e, confuso, chorou lágrimas rubras.

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